O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

domingo, 1 de setembro de 2013

Literatura, ética e política em Sartre - (Franklin Leopoldo e Silva), trechos e comentários.



(Abaixo, algumas passagens de um bonito texto de Franklin Leopoldo e Silva, que procura demonstrar o modo pelo qual, no pensamento de Sartre, a definição de ética e política iluminam-se à luz da  literatura - e vice-versa. Tentei escrever alguns comentários às passagens citadas. No final, o link com o texto inteiro).



“A historicidade refluiu sobre nós; em tudo que 
tocávamos, no ar que respirávamos, na página que líamos, naquela que 
escrevíamos, no próprio amor, descobríamos algo como um gosto de história, 
isto é, uma mistura amarga e ambígua de absoluto e de transitório”

(Sartre - Que é a literatura)




Começando por aquilo que poderíamos chamar a descoberta de nossa condição histórica, que, segundo o autor, é dramática em si mesma - para além de seu conteúdo atual, em certo sentido. Deve-se acrescentar que o peso dessa dramaticidade é negativo, sobretudo quando a descoberta é praticamente involuntária - ou seja: a história quem nos descobre, desnudando a condição do sujeito para si mesmo. 

historicidade é uma dimensão da existência, por certo. Mais importante do que a constatação é a dramaticidade da descoberta.

Pois, segundo Sartre, sua geração não chegou à história através da análise da historicidade da existência; pelo contrário, foi a história concreta, enquanto portadora do mal, que desabou sobre as suas cabeças e os fez compreender a historicidade através da experiência imediata do mal absoluto trazido pela transitoriedade da história.

Aqui o "mal", talvez, fundamentalmente, era o holocausto. Talvez porque não apenas. Nosso "habitat natural", no caso, a historicidade, é tudo, menos natural.

Assim, a história não é o ambiente do sujeito-agente histórico, de forma semelhante à que a natureza é o ambiente dos seres naturais. O homem não está na história como os seres naturais estão na terra como habitat. Historicidade não tem sentido paralelo ao de naturalidade. 
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Assim, a consciência de nossa condição histórica precisa ser "arrancada" à História.

"Historicidade significa que a história somente existe na medida em que o homem a faz fazendo-se ser histórico, o que implica tanto as determinações objetivas que nos constituem quanto as possibilidades de negá-las e superá-las pela liberdade".
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Entrando para os domínios da literatura, deve-se constatar, entre outras coisas, que a função social do leitor não se distingue fundamentalmente da função social do escritor:

"É nesse sentido (...) (que se) justifica a definição da narrativa como reciprocidade tensa da liberdade do escritor e da liberdade do leitor e nos faz entender que essa relação se constitui também ao mesmo tempo como experiência de compromisso, nos termos da função social da literatura enquanto prosa narrativa".
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Ambiguidade não é relativismo; por outras palavras: por mais que seja necessária a constatação de uma relativa aleatoriedade na vida cotidiana (de onde Sartre supõe a liberdade inevitável), jamais será o suficiente para imaginarmos a possibilidade de uma realização plena do sujeito. Ambiguidade não é relativismo. A ambiguidade e a transitoriedade da vida cotidiana é uma espécie de "liberdade condicional", que a literatura buscará dar forma:

"Assim como a descoberta da história não significa assumir o relativismo, mas sim a ambiguidade que une e separa o absoluto do transitório em tudo que seja humano, assim também a historicidade da literatura não significa a eleição dos particularismos e das circunstâncias como únicos temas, mas a figuração ficcional pela qual a narrativa singulariza no contorno de situações concretas a universalidade do drama da existência". 
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Quando a literatura obtém êxito, na exposição dessa ambiguidade ("extrema liberdade" que aprisiona o homem), a reação do leitor deve consistir - e de fato consiste - na intensificando do processo de leitura, enquanto aprofundamento no conhecimento de sua própria condição histórica:

"É nesse sentido que o escritor fala a seus contemporâneos, e que age através da palavra ao apresentar-lhes, não uma representação qualquer, mas um espelho que os reflita criticamente e que os provoca a responder pela leitura enquanto ressignificação da escrita. É a construção desse espelho crítico que podemos entender como o sentido ético e político da literatura, se tal construção corresponder à descrição da intersubjetividade no plano das práticas constituintes da existência histórica".
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Surgem algumas perguntas no caminho:

"Muitos viram nessa proposta de engajamento uma espécie de golpe fatal na autonomia da literatura. 

- Se o escritor se dirige ao leitor participante do mesmo drama histórico que configura uma época determinada com o intuito de convocá-lo a uma representação crítica da história vivida, isso não significaria fechar necessariamente o foco da literatura na dimensão conjuntural do presente, e mesmo de uma situação específica?".

Há uma diferença entre "história vivida" (a qual a grande literatura não deve retratar, mas retrata, inevitavelmente), e "dimensão conjuntural do presente". Se voltarmos aos trechos anteriores, veremos que, na visão de Sartre, a "história vivida" ultrapassa em muito a dimensão "conjuntural" do presente. Esta, diferentemente da "história vivida", não pressupõe necessariamente um movimento de totalização.

"Não estaria o escritor praticando deliberadamente a recusa de admitir o horizonte do leitor universal?".

Não existe "leitor universal". Em todo caso, seria necessário defini-lo. E, pelo que se viu até aqui do pensamento de Sartre, não há espaço para este "personagem".

Ademais, teria o escritor o direito de fazer da literatura um apelo que traga ao leitor a incômoda lembrança de que ele deveria fazer do exercício de sua liberdade uma tomada de posição no contexto de uma situação, sempre historicamente definida? 

Aqui avançamos na definição de "exercício da liberdade". Em Sartre, o homem está condenado à liberdade. Terá que exercê-la inevitavelmente, ou melhor: terá de lidar com ela até o fim de seus dias. Essa condição deriva da possibilidade, diariamente renovada, de voltarmos os olhos na direção do passado, isto é, para as determinações históricas que nos constituem. Por mais pesada que seja a herança do passado, sempre restará uma margem de locomoção do olhar, que nos permite, ao menos, enxergar este peso.

Esta margem de ação virtual, por assim dizer, quando o homem a ignora, aparece enquanto sensação de contingência, impressão constante de que a "vida é oca", e que, de algum modo, as coisas acontecem sem propósito. É que, no caso, o terreno de exercício da liberdade estará vago, por assim dizer - vazio constitutivo da realidade mesma do indivíduo, e que só pode ser "preenchido" por narrativas capazes de situá-lo historicamente - a cada minuto devemos preencher novamente esse "espaço".

O combate da aleatoriedade aparece enquanto "tomada de posição" em cada novo contexto da existência. Nesse sentido, a pergunta é auto-supressiva, nega a si mesma, já que o leitor consciente do exercício de sua própria liberdade não sentirá incômodo nenhum em ser lembrado desta consciência, que já possui. Então, devemos perguntar, para responder devidamente a pergunta: de qual espécie de leitor se trata?

E por que o escritor, também ele, teria de situar sua liberdade frente àquilo que é necessário dizer? 

Ora, se o escritor não situar sua liberdade frente àquilo que é necessário dizer, não poderá situá-la em lugar nenhum. Mas, por que o escritor precisa situar sua liberdade? Porque, do contrário, tornar-se-á refém desta liberdade, isto é, não compreenderá os limites de sua própria condição individual. De modo que, nos termos de Sartre, entre a liberdade estritamente inevitável, e a não-liberdade absoluta (a morte, talvez), é preferível esta última. A liberdade estritamente necessária, que não busca compreender a si mesma enquanto tal, é origem de sofrimentos incalculáveis. Não é possível existir escritor à margem de si mesmo.

As perguntas acima, quase redundantes em sua obviedade, servem para testar a compreensão do leitor. Como diria Morelli (personagem de Cortázar, em O Jogo da Amarelinha), numa posição abertamente sartreana: é preciso identificar e evitar o "leitor-fêmea".
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Ao mesmo tempo em que não existe, a rigor, um "leitor universal", também não existem mais públicos delimitados. A quem se dirige, então, o escritor "demitido socialmente"?

"O escritor não tem público desde que, no século XIX, a burguesia o desinvestiu da função de justificar os interesses de classe, ao descobrir que o intelectual já não mais lhe interessa porque ela já não tem necessidade de seus serviços, a não ser no mero plano secundário do entretenimento. Ao recusar a mediação do entretenimento, o escritor corroborou a sua demissão social".
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O escritor está à deriva. Que fazer? Lançar-se nos braços do proletariado? Ou seja: cumprir, a rigor, o mesmo papel desempenhado em favor da burguesia, até o séc. XIX, porém agora contra a burguesia? Deve-se notar que a ideia da revolução proletária rejeita necessariamente a figura do intelectual, já que o processo histórico que os fez aproximarem-se do proletariado é realmente uma espécie de "demissão". A figura do intelectual, assim, está desmoralizada. Não há retorno:

"Mas como a universalidade formal foi desmascarada quando a burguesia tornou-se classe dominante, e nessa denúncia consiste precisamente uma das principais frentes de combate do proletariado, a instrumentalização do escritor seria inócua e inconsequente: a burguesia conhece por experiência o que significa o papel do intelectual numa luta política e qualquer partido de esquerda aceita com relutância esse personagem sem fé, cuja fidelidade é problemática".
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Ao mesmo tempo, o verdadeiro intelectual rejeitaria a oferta dos comunistas, para assumir um cargo na revolução. A revolução dispensa os intelectuais, tanto quanto os verdadeiros intelectuais suspeitam de uma revolução que os procure. Ele sabe, por experiência, que a revolução o dispensa:

"Por outro lado, a experiência histórica também faz o intelectual hesitar quanto a essa oferta de serviços: ele sabe que a defesa de princípios gerais não só é ambígua, mas é também perigosa; que a adesão a um futuro politicamente programado é o ardil do qual ele já se fez cúmplice e vítima".
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Recusando a "mediação do entretenimento" e a sedução fácil da "revolução proletária" (ambas descoladas da "história efetiva"), o intelectual e o escritor encontram-se num difícil meio-termo, mas que pode representar uma saída:

"Assim, do mesmo modo que ele corroborou a sua demissão pela burguesia, ele também incorpora a recusa do proletariado em tê-lo como porta-voz. Não o faz em nome da liberdade abstrata de pensamento, mas em nome da necessidade concreta de um compromisso com uma história efetiva. E é assim que a demissão e a recusa políticas o lançam na política, num outro sentido de compromisso, baseado em valores que ele deve inventar".

Aqui, deve-se acrescentar um detalhe: o intelectual recusa a perspectiva da revolução numa determinada situação, em que os supostos representantes do proletariado confundem-se essencialmente com os ideólogos da burguesia, já que não passam do plano abstrato dos princípios para a "história efetiva". Mas isso não quer dizer, necessariamente, que o intelectual não deva mais acreditar na possibilidade da revolução. Caso esta se apresente como perspectiva efetiva, tem o dever de apoiá-la - sem desejar representá-la, já que, em todo caso, saberá de sua própria inutilidade. 

Desse acréscimo resulta outro: mesmo admitindo a necessária "reclusão política" do intelectual (que pode "lançá-lo na política em outro sentido"), é exagerado dizer que nessa condição o intelectual terá que "inventar" novos valores. Os valores dele serão aqueles que deveriam existir para além, obrigando-o a defendê-los sozinho, na medida em que não estão ao alcance de todos - falo da revolução, naturalmente.

As palavras de Sartre, citadas por Franklin Leopoldo, são precisas nesse sentido:

“No momento em que todas as igrejas nos expulsam e nos excomungam, em que a arte de escrever, encurralada entre as propagandas, parece ter perdido a sua eficácia própria, nosso engajamento deve começar. Não se trata de aumentar as exigências com relação à literatura, mas simplesmente de atender a todas elas, ainda que sem esperança”.

O engajamento consiste no esforço de manter vivo o sonho da revolução. E, de certo modo, tomar para si todas as exigências que esse objetivo impõe. Naturalmente, o intelectual será derrotado, não conseguirá difundir a ideia da revolução a ponto de tornar iminente sua efetivação. Mas isso é outra questão. O verdadeiro intelectual, em última análise, sonha com a supressão de si mesmo enquanto intelectual: o sentido de sua existência determina-se pela inexistência da perspectiva maior de transformação. Trata-se de assoprar a brasa, para que não apague definitivamente. Sua inutilidade será maior quanto mais próxima estiver a transformação radical - e é isso que ele deseja, para isto ainda é útil.


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